Art. 5°, IV: é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. CF/88

24 de setembro de 2011

Cartas pra você III - Cinco segundos


memorial.: 1. Escrito que relata fatos memoráveis;
Fatos memoráveis, carrego uma porção deles comigo. São muitos, são tantos, que sinto seu peso. Peso este que estou tendo que arrastá-lo comigo, minhas forças já não são suficientes para segurá-los. O que se há de fazer, quando mais uma primavera chega.. e aquela velha sensação continua comigo. As flores que se abrem não carregam o frio que o inverno deixou. As cores que saltitam pela janela não colorem o preto e branco que no meu coração ficou. As borboletas, e beija-flores e joaninhas, e passarinhos procuram outro jardim. Não há lugar pra eles aqui. Aqui, só flores velhas, que em cada uma de suas pétalas carregam os tais fatos memoráveis, e em tantas delas, só o que se vê são aquelas velhas dores. Pesado. Meu corpo está pesado de se carregar, os fatos sobrecarregam todo o resto. Não dá pra se atravessar o caminho assim, canso rápido, canso fácil. Na verdade nem me empolgo. Alguns dias me sinto leve, flutuo muito além. Então penso que a primavera chegou pra mim, que logo as flores novas já vão desabrochar. Mas tem dias que não, sinto todo o velho peso de volta. O seu peso. Parece que seu corpo, aquele que tinha o peso exato sobre o meu ainda está aqui. Parece que sinto sua respiração ofegante no meu ouvido. Tô sentindo sua mão por debaixo da blusa, passeando na minha cintura que era tão sua. Tô olhando pra você, e tentando imaginar o que será que você está pensando. Olho pela janela, pra onde foram as cores da primavera? Só o velho preto-e-branco-de-sempre. Aí vem os benditos fatos memoráveis, e começam me atormentar. Revivo sua risada, seu beijo quente, seu cheiro tão bom. Sofro sua ausência, sua falta, a vontade da presença. Clamo pela chuva, vem depressa, talvez minhas flores precisem se inundar. Me culpo, me atormento, me torturo, apunhalo minhas feridas, deixo minhas antigas cicatrizes em sangue vivo. Penso no que poderia ter feito, no que achava que devia ter feito, no que não deixei por dizer. Em vão. Um segundo depois estou lembrando, o quão lindo seria nosso memorial. O início tão inesperado. A inocência, minhas cartas, seus telefonemas, nossa espera. Relembro das coisas mágicas, o encontro na estrada, minha loucura por você, a primeira vez que ouvi 'te amo'. Está tudo registrado ali, nas velhas flores. Flores murchas, sem tom. Dois segundos depois lembro do fim, das minhas lágrimas, da minha dor. Três segundos depois lembro, que apesar de tudo, daria um bom memorial. Daqueles dignos de filme, de oscar. As borboletas timidamente passeiam. Quatro segundos depois eu lembro do fim trágico. Que você, unica e exclusivamente conseguiu dar pra nossa história. Não sou mesquinha, nem tampouco egoísta, e não estou te julgando. Mas entenda, é difícil pra eu compreender, como alguém pode ter agido, da forma que você agiu, com outro alguém, que nunca te fez nada, a não ser amar você. E a primavera não vem. A chuva não cai. Como eu posso ainda pensar em você, tantas estações já se passaram desde a sua ida. Mas penso esporadicamente. Minha obsessão por você acabou. Passo dias sem lembrar de você, já fazem muitos meses que nem pronuncio o seu nome. Sei lá, dizer seu nome com todas as letras arrepia minha espinha. Hoje foi um dos dias que aqui não fez sol. Ainda que ele tenha me esquentado com mais frequência que a pouco tempo atrás. Eu estou lutando. Tô jurando pra mim que sim. Meu jardim ainda espera a chuva. Espera as flores novas. Espera a presença das borboletas. Preciso que alguém carregue seu corpo, tire ele de cima de mim. Que leve junto essa porção de fatos. Que leve todos. Não deixe nenhum aqui. Isso! Alguém com coragem suficiente que te mate de dentro de mim, que oculte seu cadáver em algum lugar bem longe da minha memória. Que me roube tudo. Que tire tudo de mim. Que me deixe sem nada. Que me bata, quem sabe assim eu acorde desse filme. Quem sabe assim o sol brilhasse todos os dias. Quem sabe assim eu sentiria o que mereço. Passam rápidas as estações e as cores aqui não mudam. Cinco segundos depois continuo aqui, na espreita, à espera do sol forte. Á espera da chuva revigorante. Do desabrochar de flores novinhas e leves. Da presença das borboletas. Da destruição do nosso memorial com seu final indigno. Da fuga perfeita, do seu assassino. Do início da verdadeira primavera dentro de mim.
Inspiração: http://www.youtube.com/watch?v=O8v26s0LuZs

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